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19 April 2024

Alvim expôs como nunca lado autoritário do governo Bolsonaro, avaliam especialistas

O diretor de teatro Roberto Alvim ocupou o cargo de secretário especial da Cultura do governo Bolsonaro por 72 dias. O dramaturgo deixou o governo nesta sexta-feira (17), após interpretar o ministro da propaganda nazista Joseph Goebbels em um vídeo institucional, ao anunciar, no exercício da função, um programa do governo voltado para premiar artistas.

Alvim não só usou um trecho do discurso adaptado às suas falas, como reproduziu o semblante sisudo do homem acusado de crimes contra a humanidade. Com uma Cruz de Lorena à direita, ainda usou como trilha sonora a ópera Lohengrin, de Richard Wagner, compositor favorito de Adolf Hitler.
A emulação mais evidente a Goebbels no vídeo ocorre em uma fala do ex-secretário, quando Alvim afirma que “a arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional, será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional, e será igualmente imperativa, posto que profundamente vinculada às aspirações urgentes do nosso povo — ou então não será nada”.

No livro Joseph Goebbels: Uma biografia, do historiador alemão Peter Longerich, consta o discurso do ministro da propaganda: “A arte alemã da próxima década será heroica, será ferreamente romântica, será objetiva e livre de sentimentalismo, será nacional com grande pathos (potência emocional) e igualmente imperativa e vinculante, ou então não será nada”.

Convite a atriz

Alvim tentou se defender. Disse que se tratou de uma “coincidência com uma frase do discurso de Goebbels”. “Não o farei e jamais o faria. Foi, como eu disse, uma coincidência retórica, mas a frase em si é perfeita: heroísmo e aspiração do povo é o que queremos ver na arte nacional”, argumentou.

Pouco depois, porém, Bolsonaro exonerou Alvim. “Comunico o desligamento de Roberto Alvim da Secretaria de Cultura do Governo. Um pronunciamento infeliz, ainda que tenha se desculpado, tornou insustentável a sua permanência.

Reitero nosso repúdio às ideologias totalitárias e genocidas, bem como qualquer tipo de ilação às mesmas. Manifestamos também nosso total e irrestrito apoio à comunidade judaica, da qual somos amigos e compartilhamos valores em comum”, disse, em nota.

Horas após a exoneração de Alvim, a atriz Regina Duarte, de 72 anos, foi convidada pelo presidente Jair Bolsonaro para assumir a Secretaria Especial de Cultura. Ela pediu tempo para conversar com a família e deve dar uma resposta hoje.

Logo após a exoneração de Alvim, parlamentares correram até o Executivo para indicar um substituto. “Mais de 40 políticos entraram em contato para sugerir alguém”, informou ao Correio uma fonte do alto escalão do governo federal.

O último ato de uma gestão conturbada

A citação de trechos do ideólogo nazista Joseph Goebbels foi o último ato da conturbada passagem do dramaturgo Roberto Alvim no governo do presidente Jair Bolsonaro. Conservador, Alvim é discípulo de Olavo de Carvalho e gozava de grande prestígio junto ao chefe do governo. Em live transmitida nas redes sociais na quinta-feira, o presidente sentenciou: “Ao meu lado, aqui, o Roberto Alvim, o nosso secretário de Cultura. Agora temos, sim, um secretário de Cultura de verdade. Que atende o interesse da maioria da população brasileira, população conservadora e cristã”.

Antes de comandar a Secretaria Especial da Cultura, o dramaturgo já havia trabalhado à frente do Centro de Artes Cênicas (Ceacen) da Funarte. A aproximação com Bolsonaro ocorreu à época da campanha presidencial de 2018, quando Alvim declarou apoio ao então candidato do PSL.

Quando estava na Funarte, Alvim costumava destacar a necessidade de se combater o “marxismo cultural”, uma expressão amplamente utilizada na Alemanha nazista. Também à frente da fundação, ele provocou forte reação da classe artística ao atacar, com ofensas, a atriz Fernanda Montenegro. Nas redes sociais, a chamou de “intocável” e “mentirosa”.

Alvim, como a maior parte dos ministros e secretários do governo, foi convidado para integrar a equipe após demonstrar alinhamento com ideais conservadores.

Por essa razão, quando o presidente o nomeou para comandar a pasta de Cultura, em novembro, disse que Alvim teria “porteira fechada”. O secretário imprimiu uma guinada conservadora na administração da área. Nomeou membros da Cúpula Conservadora das Américas e defensores da promoção de filmes com valores patrióticos e de preservação da família. Também esvaziou a Ancine, a Agência Nacional de Cinema.

Alvim nomeou ainda o jornalista Sérgio Camargo para a presidência da Fundação Palmares. A escolha gerou uma grande onda de protestos, já que, em postagens nas redes sociais, Camargo pediu o fim do movimento negro e afirmou que a escravidão no Brasil foi “terrível”, porém “benéfica” para os descendentes. “Negros do Brasil vivem melhor que os negros da África”, escreveu. Em meio às repercussões, a Justiça suspendeu a nomeação do jornalista. E o presidente Bolsonaro decidiu revogá-la.

O vídeo de inspiração nazista encerrou o mandato de Alvim marcado por turbulências

O ministro do ódio

Um dos homens da mais alta confiança de Adolf Hitler, Joseph Goebbels era um fanático antissemita, que difundia amplamente o ódio aos judeus e apoiou o genocídio deste povo durante o Holocausto. Goebbels foi ministro da Propaganda da Alemanha Nazista e usou do posto de liderança para, além de ter total controle da imprensa, da arte e da informação no país.

Goebbels teve rápida ascensão no partido de Hitler. De 1923 a 1933, ocupou diferentes cargos, tendo sido editor de um jornal de propaganda nazista e líder da máquina de propaganda do partido — ele se tornou um dos maiores estrategistas de manipulação de massas. Durante este intervalo, ele criou a saudação “Heil Hitler”, que se tornou o maior culto de propagação à figura do ditador.

Com a ascensão de Hitler a chanceler da Alemanha, em 1933, Goebbels foi nomeado ministro da Propaganda. Como detinha o controle da produção jornalística no país, Goebbels censurou e perseguiu repórteres judeus e opostos ao regime nazista. Além disso, instaurou a Câmara de Cultura da Alemanha Nazista, que tinha como principal objetivo banir os judeus das atividades culturais e que promoveu a destruição de livros considerados “não alemães”, com grandes fogueiras que deram fim a obras de escritores liberais, pacifistas e socialistas.

“Passou de todos os limites”

As reações ao vídeo elaborado por Roberto Alvim foram instantâneas. Toda a Praça dos Três Poderes criticou com veemência o discurso inspirado na ideologia nazista e muitas das frases de repúdio ao agora ex-secretário especial da Cultura destacaram que a postura dele é “inadmissível”, “infeliz” e “inaceitável”, como classificou o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ). “O secretário da Cultura passou de todos os limites. É inaceitável”, afirmou o deputado, que iniciou o movimento pelo afastamento de Alvim. “O governo brasileiro deveria afastá-lo urgente do cargo”, escreveu o democrata, horas antes da exoneração.

Os presidentes do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal (STF) também se colocaram contra Alvim. Judeu, o senador Davi Alcolumbre (DEM-AP) lamentou a forma escolhida por Alvim para divulgar o vídeo institucional. “Manifesto veementemente meu total repúdio a essa atitude”, afirmou o parlamentar, que também clamou pelo “afastamento imediato” de Alvim pelo pronunciamento “de assombrosa inspiração nazista” e ao qual classificou como “acintoso, descabido e infeliz”.

“É inadmissível termos representantes com esse tipo de pensamento. E, pior ainda: que se valha do cargo que ocupa para explicitar simpatia pela ideologia nazista e, absurdo dos absurdos, repita ideias do ministro da Informação de Adolf Hitler, que infligiu o maior flagelo à humanidade”, condenou Alcolumbre.

O ministro Dias Toffoli, por sua vez, definiu o discurso como uma “inaceitável agressão”. “Há de se repudiar com toda a veemência a inaceitável agressão que representa a postagem feita pelo secretário de Cultura. É uma ofensa ao povo brasileiro, em especial à comunidade e judaica”, disse o presidente do Supremo.

O procurador-geral da República, Augusto Aras, endossou as críticas. Segundo o chefe do Ministério Público Federal (MPF), “a única ideologia política admissível no estado brasileiro é o regime democrático participativo”.

“Toda e qualquer doutrina que atente contra ideologia participativa há de merecer a rejeição da sociedade brasileira”, analisou. Aras acrescentou que “a liberdade de expressão deve ser relativizada – somente neste contexto – quando se revela a promoção de doutrinas nazifascistas que importam na destruição da própria democracia”.
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Líderes partidários do Congresso reforçaram as declarações de Maia e Alcolumbre. Presidente nacional do MDB, o deputado Baleia Rossi (SP) reclamou do “infame ‘copia e cola’ da propaganda nazista” produzida pela Secretaria Especial da Cultura. O o líder do Novo na Câmara, deputado Marcel van Hattem (RS) classificou a fala de Roberto Alvim como “absurda, nauseante”.  “Quem recita Goebbels e faz pronunciamento totalitário não pode servir a governo nenhum no Brasil”, afirmou.

Falas

“O secretário da Cultura passou de todos os limites. É inaceitável”, afirmou o deputado, que iniciou o movimento pelo afastamento de Alvim. “O governo brasileiro deveria afastá-lo urgente do cargo”, Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara dos Deputados.

“É inadmissível termos representantes com esse tipo de pensamento. E, pior ainda: que se valha do cargo que ocupa para explicitar simpatia pela ideologia nazista e, absurdo dos absurdos, repita ideias do ministro da Informação de Adolf Hitler, que infligiu o maior flagelo à humanidade”, Davi Alcolumbre (DEM-AP), presidente do Senado Federal.

“Inadmissível, repugnante e patológica a atitude de Roberto Alvim, de copiar o discurso de um nazista. Além disso, ao ressaltar que a arte brasileira será profundamente vinculada às aspirações urgentes do povo, ele a descaracteriza como uma manifestação da criação e da liberdade para transformá-la em um instrumento

pró-ditadura”, Carlos Sampaio, deputado federal (PSDB-SP).

“É repugnante e inaceitável o discurso (de Alvim). Não pode haver espaço para esse tipo de apologia de ideias que levaram a crimes de lesa-humanidade.” , Marina Silva, ex-ministra do Meio Ambiente.

“A riqueza da manifestação cultural repele o dirigismo autoritário nacionalista”. “A arte é, na sua essência, transformadora e transgressora. O que faz do Brasil um país grandioso é a força da sua cultura, fruto de um povo profundamente miscigenado e diversificado”, Gilmar Mendes, ministro do STF.

“Milhões de seres humanos foram mortos como consequência deste tipo de discurso.”, Ciro Gomes (PDT), ex-governador do Ceará.

“Lamentável que nos dias de hoje alguém faça apologia ao nazismo Uma vergonha e deplorável, sobretudo por vir de um representante público”, João Doria (PSDB), governador de São Paulo.

“A demissão do secretário resolveu o problema. Agora é atribuição do presidente encontrar outra pessoa de direita para a pasta, que é uma das mais infiltradas e aparelhadas pela esquerda”, Sóstenes Cavalcante, deputado federal (DEM-RJ).

“O presidente agiu certo e de forma ágil”, Marcos Pereira (Republicanos-SP), vice-presidente da Câmara.

“Ele (Bolsonaro) foi cirúrgico”, Carla Zambelli, deputada federal, (PSL-SP). O ex-partido do presidente divulgou nota dizendo que era “inadmissível aceitar tal posicionamento partindo de um representante de um país democrático.”

Repúdio em escala global

“Goebbels foi um dos mais cruéis ministros da propaganda. Isso é nojento. É positivo que Alvim tenha sido demitido.” Quem sentencia é Gábor Hirsch, 89 anos, sobrevivente de Auschwitz, ao saber do vídeo do então secretário de Cultura Roberto Alvim parafraseando um discurso do ministro nazifascista. Há 75 anos, no fim da 2ª Guerra Mundial, Hirsch escolheu permanecer no campo de concentração, pois não tinha mais força para longas caminhadas. Os Aliados estavam a caminho, e deixar o local com os soldados nazistas significaria a morte. O ex-prisioneiro representa, em sua fala, o sentimento de milhares de judeus, muitos deles filhos, netos ou bisnetos das vítimas da máquina de genocídio nazista.

Hirsch mora em Zurique, na Suíça, e falou exclusivamente ao Correio. Na manhã de ontem, a presidente da Associação Cultural Israelita de Brasília, Tamara Socolik divulgou uma nota.

No texto, ela afirma que a comunidade judaica do Distrito Federal foi surpreendida com a notícia do pronunciamento de Alvim “apresentando a nova política governamental para a pasta da Cultura para o Brasil, inspirado nos valores da política nazista e fazendo uso de ferramentas de Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazista de Hitler”.

“Diante de tamanha afronta, não apenas à comunidade judaica, mas à diversidade cultural que caracteriza o nosso país, a Associação Cultural Israelita de Brasília (Acib) se soma à condenação expressada pela Confederação Nacional Israelita do Brasil (Conib) e apoia a exoneração do secretário de seu cargo”, escreveu Socolik.

A Conib, por sua vez, tachou de inaceitável “o uso de discurso nazista pelo secretário da Cultura do governo Bolsonaro”. O texto destacou que a apresentação de Alvim “é um sinal assustador da sua visão de cultura, que deve ser combatida e contida”.

“Goebbels foi um dos principais líderes do regime nazista, que empregou a propaganda e a cultura para deturpar corações e mentes dos alemães e dos aliados nazistas a ponto de cometerem o Holocausto, o extermínio de 6 milhões de judeus na Europa, entre tantas outras vítimas. O Brasil, que enviou bravos soldados para combater o nazismo em solo europeu, não merece isso”, afirmou a nota.

A Embaixada da Alemanha no Brasil também repudiou o vídeo institucional da Secretaria Especial da Cultura. De acordo com a representação, “o período do nacional-socialismo é o capítulo mais sombrio da história alemã, trouxe sofrimento infinito à humanidade”.

“A Alemanha mantém sua responsabilidade. Opomo-nos a qualquer tentativa de banalizar ou mesmo de glorificar a era do nacional socialismo”, divulgou a representação diplomática nas redes sociais. E a Embaixada de Israel afirmou que “a comunidade judaica e o Estado de Israel estão unidos no combate a todas as formas de antissemitismo”.

“Por esta razão, a Embaixada de Israel apoia a decisão do governo brasileiro de exonerar o secretário especial de Cultura, Roberto Alvim. O nazismo e qualquer uma de suas ideologias, personagens e ações não devem ser utilizados como exemplo em uma sociedade democrática sob nenhuma circunstância”, acrescentou o texto.

O vídeo institucional em que o então secretário de Cultura, no exercício da função, parafraseia Gobbels também foi notícia em jornais internacionais. O jornal francês Le Figaro, por exemplo, repercutiu o assunto, bem como a agência portuguesa Lusa. O jornal americano The New York Times afirmou que Alvim foi demitido por “evocar propaganda nazista””, e que o ex-secretário acabou criticado por autoridades brasileiras e, até mesmo, pelo astrólogo e guru de bolsonaro, Olavo de Carvalho.

Os textos mais contundentes vieram da revista alemã Der Spiegel e do jornal espanhol El Pais. O primeiro veículo chamou o presidente da República de populista de direita e definiu o posicionamento de Alvim no vídeo como assustador. Já o jornal europeu deu ênfase à nota de Bolsonaro a respeito da demissão do ex-secretário, na qual o presidente fala em “pronunciamento infeliz”.


Palavra de especialista

O professor de história Deusdedith Alves alerta que, desde 2019, o país se depara com uma sequência de posicionamentos do Executivo federal que remetem a ideias totalitárias. No entanto, para o estudioso, até a data de ontem, nenhum episódio de autoritarismo do governo Bolsonaro havia sido tão explícito quanto o vídeo de Alvim.

“A diferença entre abuso e ameaça é o simples fato de ser explícito demais. Não foi a primeira vez que o governo elaborou um discurso que ameaça a democracia; mas foi a primeira vez que repetiu um discurso nazista. Essa perspectiva nunca tinha se revelado com tanta clareza”, analisa.

O estudioso alerta que o vídeo institucional representa um desejo do governo federal de implementar uma “cultura perfeita” no Brasil, algo semelhante ao que tentou fazer a Alemanha Nazista de Hitler.

“As falas do Alvim refletem exatamente aquilo que o nazismo pretendeu na área cultural, no âmbito arquitetônico, da música, da pintura e da literatura. Eles queriam uma arte que representasse o ideal de pureza. Mas o que seria a nossa pureza? Não temos uma ideia muito clara, a não ser a idealização da cultura ocidental absolutamente branca e a negação da diversidade cultural que existe hoje no Brasil”, diz Alves.