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4 December 2024

Eles dão o sangue: homens lideram doações, mas gays ainda são proibidos

Dar o sangue, na Bahia, significa se empenhar ao máximo por alguma causa ou coisa. Mas para muitos baianos, principalmente da ala masculina, dar o sangue também é algo literal: ceder para quem precisa de uma transfusão. E em matéria de disposição para esse ato de compaixão, são mesmo os varões que mais têm comparecido às unidades da Fundação de Hematologia e Hemoterapia da Bahia (Hemoba) para reabastecer os estoques de socorro.

Durante todo o ano passado, as 28 unidades hemoterápicas de coleta e processamento de sangue públicas do estado receberam 159 mil candidatos a doadores, sendo 55% homens (cerca de 87 mil) e 45% mulheres (pouco mais de 71 mil).

No Brasil, que comemora neste domingo (25) o Dia do Doador Voluntário de Sangue, a vantagem masculina é ainda maior, de acordo com o Ministério da Saúde. Das 3,3 milhões de pessoas que doaram e aproximadamente 2,8 milhões que realizaram transfusão sanguínea no país no ano passado, 60% eram do sexo masculino e 40% do lado feminino. A diferença poderia ser ainda maior, não fosse uma determinação de 2002, que proibiu os homens gays de doar (ver mais abaixo).

Para o aposentado Cézar Augusto Teixeira, 57 anos, que foi doar pela primeira vez na vida na última quinta-feira (22), no Hemocentro Coordenador do Hemoba, em Brotas, essa vantagem numérica dos homens se explica pelo “medo que as mulheres têm, apesar da coragem que elas têm para várias coisas”.

A opinião não agradou muito sua esposa, a professora de gastronomia Josenice Guimarães Teixeira, 53, dezenas de vezes mais experiente em doações e também presente para nova coleta. “Esse aí, quando tem qualquer coisa, só Jesus! Quando está doente, parece que está morrendo”, brinca ela, antes da tréplica do maridão: “Só fiquei mal assim quando tive dor por cálculo renal”.

los cálculos da Hemoba, 38% dos doadores são jovens entre 18 e 20 anos. É o caso do estudante Ariel Amorim, 20, outro homem que marcou presença no Hemocentro de Brotas, na quarta. Nesta terceira vez, entrou na conta dos 43% de doadores de reposição (que direciona a doação para algum paciente), mas já apareceu também como voluntário (caso de 57% que doam para qualquer pessoa). “Foi na primeira vez, ano passado. Normalmente, é muito difícil a pessoa sair de casa pensando: ‘ah, vou doar’. Mas eu aproveitei uma campanha de doação”, conta.

Sobre a liderança masculina no ranking, acredita que haja fatores que favorecem eles e prejudicam elas. “Mulheres têm mais essa sensibilidade, da importância de doar. Mas tem também a questão do porte físico, ou da gravidez”, cita, ao lembrar de alguns impedimentos (ver lista abaixo).

Mais chances
Ariel dá as primeiras pistas que “explicam” a dianteira da rapaziada, que pode, inclusive, doar mais vezes e com menor tempo de resguardo. Enquanto eles podem praticar a boa ação até 4 vezes a cada 12 meses, com intervalo mínimo de 60 dias entre as doações, as mulheres podem até 3 vezes por ano, com intervalo mínimo de 90 dias entre as retiradas.

O assistente de veterinária Aristóteles Brito Filho, 55, é um dos que comparecem em todas as oportunidades que têm para doar no ano, e engrossam as estatísticas a favor da ala masculina. Ele conta que já perdeu as contas de quantas vezes doou, quase sempre de forma voluntária. “Eu conheço um pessoal da área de saúde que me falou sobre a importância de doar, e sempre que posso, venho aqui”, explica ele, que sempre procura aparecer nas datas mais próximas ao Natal e São João, quando o estoque costuma estar mais baixo.

utra que perdeu a conta das vezes que doou – “umas 40, desde 2003” –, a professora Josenice não parece crer que haja tantos homens com atitudes semelhantes à de seu Aristóteles e, consequentemente, põe em xeque a liderança masculina. “Tá errado isso aí. Aliás, talvez seja esse valor porque vem o Exército, vem a Polícia Militar, Civil, Federal… Eles estão ganhando por causa disso. Porque são ‘obrigados’”, sentencia. A percepção não é tão equivocada, segundo a assessoria da Hemoba, que cita os impedimentos temporários que também influenciam a menor possibilidade de participação feminina. Uma mamãe, por exemplo, não pode doar no período da gravidez (9 meses), nem no período pós-gravidez (90 dias para parto normal e 180 dias para parto cesariano), e nem durante os 12 primeiros meses de amamentação.

Comoção
Além disso, são muito mais comuns os grupos masculinos que aparecem para doar, por exemplo, a ‘pedido’ do patrão ou em ações beneficentes de forças de segurança. Mas a técnica de enfermagem Marisa Sampaio, que trabalha há quatro anos na triagem hematológica da Hemoba, conta que essa presença massiva dos ‘machões’ muitas vezes esbarra na ponta de uma agulha. “Já vi muitos desistirem ao ver”, revela, lembrando que também já presenciou gente sair chorando por não poder doar.

Ela explica que a coragem costuma aumentar, independente do gênero, quando ocorre alguma campanha ou diante de algum episódio de grande comoção. “A última que veio muita gente de vez foi quando aquele professor foi baleado no Rio Vermelho”, lembra Marisa, citando o caso do professor Danilo Fortuna Mendes de Souza, 36, atingido por assaltantes na tarde do dia 20 de setembro. Apesar do esforço de amigos, parentes e até desconhecidos, Danilo faleceu três dias depois.

Segundo Marcelo Matos, coordenador técnico de coleta da Hemoba, Salvador tem, atualmente, uma demanda diária de 250 bolsas de sangue (cada uma possui entre 410 ml a 470 ml). No entanto, só consegue doações de 170 a 180 bolsas. Ou seja, 30% abaixo do que precisa para atender a demanda.

Homofobia ainda barra doação
As diversas restrições que as mulheres encontram para doar reduzem as chances delas concorrerem em pé de igualdade com os homens, nessa ‘guerra dos sexos’ do bem. No entanto, uma parcela do flanco masculino sai prejudicada, e por critérios bastante questionáveis: homens gays são, simplesmente, proibidos de ofertar sangue.

A situação recorrente, que começou a valer a partir de uma resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publicada em 2002, virou tema de uma monografia, defendida no curso de Direito da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) pelo agora advogado Davi Cordeiro, 24. “A inconstitucionalidade da proibição de doação de sangue por homossexuais” levou nota máxima, neste mês, mas começou a ser gestada há dois anos.

“Em 2016, fui impedido de doar para um amigo que faria uma cirurgia. Eu estava em perfeito estado de saúde, tinha um relacionamento estável com um mesmo parceiro. Ainda assim, meu sangue sequer foi coletado”, contou Davi, que a partir da experiência, começou a estudar a origem e natureza da proibição (ver entrevista completa abaixo).

Para provar que a situação, de fato, ocorre, o repórter foi ao Hemoba e se passou por um doador homossexual. Ao ser chamado numa sala reservada, o médico da triagem colocou o medidor de pressão arterial, perguntou sobre as condições físicas do repórter e avisou que, por ser uma primeira doação, faria um questionário “para garantir a segurança de quem vai receber o sangue”.

Segue o diálogo:
– Você já teve hepatite, malária?…
– Não.
– É diabético? Já teve convulsão? Teve asma? Algum tipo de câncer?…
– Também não.
– Teve calazar?
– Sei nem o que é isso.
– Calazar é uma doença infecciosa que incha o fígado.
– Tive não.
– Atualmente, tem alguém com quem você se relaciona sexualmente?
– Tenho um namorado, mas é uma relação estável?
– Você tem uma namorada?
– NamoradO!
– Namorado. Você tem um parceiro fixo. Há quanto tempo?
– Dois anos.
– Usam preservativo?
– Sim.
– Sempre ou às vezes?
– Sempre.
Já retirando o medidor de pressão:
– Olha só. A questão é que, pela legislação, não pode fazer doação de sangue.
– Mesmo sendo um parceiro fixo?
– Mesmo assim. Isso é um absurdo, mas pela legislação atual, qualquer homem que pratica sexo com outro homem não pode fazer a doação. A não ser que tenha mais de um ano sem praticar sexo. Antigamente era em qualquer época, não podia doar. Houve uma melhora. Mas a legislação é muito preconceituosa mesmo.
– Mas eu podia (ser heterossexual e) ter uma parceira fixa, e ser promíscuo.
– Óbvio! Os critérios deveriam ser iguais.

Sim, os critérios são desiguais, mas o Ministério da Saúde nega o viés do preconceito. Em nota, comenta que a medida “atende recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e está fundamentada em dados epidemiológicos presentes na literatura médica e científica nacional e internacional, não tendo relação com preconceito ou orientação sexual do candidato”.

Diz ainda que os critérios para doação “estão baseados na proteção dos receptores”, cita o “perfil epidemiológico de grupos populacionais” e o “risco da exposição a diferentes situações, constatando aumento do risco de infecção em determinadas circunstâncias”. A Fundação Hemoba diz seguir as recomendações da pasta.

Autor da monografia “A inconstitucionalidade da proibição de doação de sangue por homossexuais”, Davi Cordeiro, 24 anos, falou ao CORREIO sobre os principais argumentos que fundamentam o seu trabalho, apresentado na conclusão do curso de Direito da Uneb, neste mês.

  • Seu trabalho defende que a restrição é inconstitucional. Que argumentos você utiliza pra sustentar isso?

A restrição viola expressamente os princípios da dignidade da pessoa humana, liberdade, solidariedade, proporcionalidade e o direito à igualdade, todos defendidos pela nossa Constituição. Além disso, a nossa Constituição proíbe expressamente a adoção de critérios de diferenciação aos cidadãos com base em preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, o que certamente inclui a orientação sexual. Com a tecnologia que existe, não faz mais sentido deixar de coletar o sangue de alguém por puro preconceito, já que todo sangue coletado é analisado antes de ser transfundido em alguém. Isso coloca em dúvida, inclusive, a própria credibilidade da análise laboratorial do material sanguíneo que é coletado. Se a análise é segura e não oferece riscos, por que não coletar o sangue dos gays e submetê-lo a análise clínica?

  • O que lhe motivou a fazer a monografia sobre esse assunto?

A indignação. Em 2016, eu fui ao Hemoba e fui impedido de doar sangue para um amigo faria uma cirurgia de alto risco e necessitava de transfusão. Eu estava em perfeito estado de saúde, tinha feito exames de rotina há pouquíssimo tempo. Na época, eu tinha um relacionamento estável com um mesmo parceiro há 3 anos. Ainda assim, meu sangue sequer foi coletado para ser submetido ao procedimento de análise laboratorial que é realizado antes da efetiva transfusão. Eu não conhecia a proibição, então fui pego completamente de surpresa. Quando a profissional que realizou a minha entrevista me explicou o motivo pelo qual eu tinha sido considerado inapto à doação, além da tristeza e impotência por não conseguir ajudar meu amigo, eu fiquei indignado. Quando saí de lá, fui pesquisar a respeito e foi quando eu descobri que a vedação existia. A partir daí eu comecei a estudar e questionar mais a fundo sobre a origem e a natureza da proibição.

  • Você conhece muitas pessoas que já tiveram a doação negada por ser homossexual?

Até então eu não conhecia. Quando eu comecei a pesquisar sobre o assunto e conversar com as pessoas, vários amigos me relataram experiências parecidas. Acabei descobrindo que quase todos os homens gays que tentaram doar sangue no Brasil foram impedidos, exceto aqueles que preferiram mentir a orientação no procedimento de triagem.

  • Qual das situações mais chamou a sua atenção?

Um caso que me marcou muito foi um atentado terrorista por motivação homofóbica que aconteceu em 2016, na boate Pulse, em Orlando (EUA). Foram quase cem pessoas, entre mortos e feridos em estado muito grave. Os sobreviventes necessitaram de uma demanda muito alta de doação de sangue que esgotou os estoques dos hemocentros da cidade. Como lá também existe essa restrição, os membros da própria comunidade LGBTQ+ foram impedidos de ajudar seus amigos hospitalizados que necessitavam de transfusão e lutavam pela sobrevivência, depois de terem sido vítimas de um crime motivado justamente por preconceito por orientação sexual. Eu fiquei muito impactado com isso, porque me remeteu à minha situação.

  • Houve alguma situação de constrangimento?

Completamente. Apesar de eu ser muito bem resolvido sexualmente, fiquei extremamente constrangido e envergonhado quando não pude doar. Eu tentei até questionar ou argumentar com a profissional na época, mas não tinha muito o que fazer. Tudo o que eu queria era sair correndo pra chorar. Mas tive que sair da sala da triagem, encarar a família do meu amigo que me esperava contando com a minha doação e inventar uma desculpa qualquer, porque não tive coragem de dizer o real motivo. Você se sente um lixo, né?

  • A restrição para homossexuais é apenas para homens ou também se estende às mulheres gays?

Não se estende. A proibição só alcança as mulheres que tiverem feito sexo com homens homossexuais ou bissexuais. Pela regulamentação, são considerados inaptos temporários (por 12 meses) todos os homens que tiverem mantido relações sexuais com outros homens, bem como as parceiras sexuais destes nos últimos 12 meses. Ou seja: se você for homem gay e quiser doar sangue, você precisa ficar pelo menos um ano em abstinência sexual, ainda que a prática sexual seja segura e não considerada de risco.

  • Há uma estimativa de quantos litros de sangue a Bahia pode estar perdendo com essas restrições?

Não dá pra ter certeza, porque pra isso precisaríamos saber quantos homens gays vivem aqui. Mas no Brasil, são cerca de 19 milhões de litros de sangue todos os anos. Levando em consideração que uma bolsa de sangue pode salvar até quatro vidas, são cerca de 76 milhões de pacientes precisando de transfusão e que estão perdendo com essa proibição discriminatória. É desumano. (Nota: Segundo o IBGE, em 2010, 6.626 pessoas viviam em uniões homossexuais (não necessariamente em casamentos civis) na Bahia. No Brasil, 134.890 pessoas estavam declaradamente em relações com parceiros do mesmo sexo).

  • Você afirma que é preciso “questionar e resistir” a essa restrição. Quando você acha que esse engajamento surtirá efeito?

Eu espero que muito em breve. Desde 2016, tramita no STF uma Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pelo PSB que discute o assunto. Inclusive, o meu trabalho propõe justamente um desfecho para essa ação, que deve declarar a inconstitucionalidade da proibição e determinar a sua exclusão das normas do Ministério da Saúde e à Anvisa da ordem jurídica brasileira. Seria um grande passo para amenizar a carência de sangue nos hemocentros do Brasil, e também para promover a inclusão da comunidade LGBTQ+, que historicamente sofre um desacolhimento de direitos e discriminação das políticas públicas.